segunda-feira, 20 de agosto de 2012

[Resenha] A criatividade na obra de Winnicott. BARBOSA, Marina de Toledo.

vitcheb

Sempre boa tarde aos que por aqui estiverem ou passarem. Eis que iniciamos mais um semestre letivo, e me vejo impulsionada a construir novos projetos… Assim, a resenha de hoje foi elaborada com base na monografia de conclusão de curso de Mariana de Toledo Barbosa, orientada por Maria Teresa da Silveira Pinheiro e apresentada ao Instituto de Psicologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,  em 2004. Com o título A criatividade na obra de Winnicott; pretendeu-se colaborar com a ampliação dos estudos relativos ao psicanalista inglês, tendo em vista sua importância, considerando-se as novas demandas que se abrem ao campo da psicanálise na contemporaneidade. De acordo com sua leitura é possível verificar a riqueza do pensamento do autor no tocante a construção de uma vida criativa e livre de submissões.
E, já que estamos falando em criatividade, as imagens que ilustram a postagem de hoje são do escultor e grafiteiro paulistano Vitché. Fui apresentada a seu trabalho durante esta semana (graças às postagens amigas do Facebook) e acho pertinente considerar a amplitude de sua proposta criativa, ao trabalhar, por exemplo, com a temática circence, em diversos suportes. Fica a dica!!
Um bom retorno e grandes abraços,
Lorena Oliveira
vitched vitche vitchea vitchec
____________________________________________________________
Resenha
A arte “(...) nasce de um espanto e de um fascinio,
de uma desarrumação, onde o espaço para a vida
parece ter se multiplicado de tal forma, que
suas fronteiras já de dispõem como horizontes misteriosos,
que se lançam infinitamente a um fim que nunca se atinge.” (p.3)
A autora inicia este trabalho destacando a importância das teorias propostas por D. Winnicott para a construção de uma prática psicanalitica condizente com as atuais demandas que se abrem ao campo tendo em vista a diminuição da problemática elaborada por S. Freud “(...) cujo trabalho era alinhavado, em geral, tomando-se como pontos chaves o triângulo edipiano e a sexualidade.”; e o aumento das questões relativas ao narcisismo, até então pouco exploradas, ao menos no Brasil1. Com o objetivo de discutir a ideia de criatividade2 na obra do autor, Barbosa nos introduz em sua produção relativa à constituição do eu dizendo que
“Em sua teoria do desenvolvimento emocional, ele tenta dar conta dos primórdios da vida do sujeito e das condições para a conformação de um eu que seja real e significativo. Busca apontar a imprescindibilidade de um ambiente confiável, de uma mãe dedicada, para que se erija um eu enriquecido permanentemente pelo fazer criativo.”(p.5)
Pediatra inglês, seguindo as proposições elaboradas por M. Klein, passou a dedicar-se a análise infantil; atribuindo importância fundamental a relação estabelecida entre os bebês e suas mães e o ambiente no qual estas ocorrem, para a construção potencial de uma vida criativa que se atualiza através das experiências. Em relação ao ambiente, ao contrário do proposto por S. Freud para o qual a realidade é frustrante uma vez que inibe a completa satisfação das pulsões/instintos, “(...) para Winnicott é potencialmente dadivosa e tem a função de assegurar limites para a fantasia. (…) A cultura se coloca como um meio de realização do self, e não como uma renúncia pulsional compulsória.” (p.7)
Para Winnicott, entende-se pulsão/instinto, não como impulso para o prazer mas sim como impulso no sentido do desenvolvimento, da maturidade. Desta forma, nas palavras da autora
“É partindo desta perspectiva teórica que Winnicott inverte a proposição de que a satisfação pulsional possibilita a relação da criança com a mãe, afirmando que, ao contrário, é a relação mãe-bebê que torna a satisfação pulsional possível, o que ratifica o papel determinante do ambiente. A noção de gratificação cede lugar a de 'significância' como critério para a satisfação pulsional. A vida pulsional só tem satisfação frente à presença de uma mãe que dê suporte ao bebê para que este organize suas experiências e perceba 'significância' nelas (...)” (p.8)
Dito isto e considerando a ampla experiência do autor enquanto analista infantil, diz BARBOSA que um dos aspectos mais interessantes de suas teorias se constitui em torno do objetivo de compreender a vida e suas especificidades salientando que “Esta obstinação em buscar o valor da vida – em tentar traçar na vida o que a reveste de valor (…) Não [se] trata de uma busca equivocada por uma felicidade incondicional como fundamento da vida, mas da afirmação de tudo o que vivemos, em que se abraça o sofrimento como mais uma das vicissitudes de um viver criativo.” (p.10) Frente ao paradoxo segundo o qual construímos e somos construídos ao entrarmos em contato com o mundo, encontramo-nos claramente com a potencialidade criativa dos homens. Estes, enquanto portadores de uma psique integrada, realizam cotidianamente a criatividade ao construírem suas experiências ao longo da vida. Nas palavras da autora, “Winnicott enxerga na vida seu enorme potencial criativo, sua generosidade de formas, sua proliferação do novo, sua germinação variada. Cria-se o mesmo sempre algo renovado, e os criadores somos nós próprios: criadores do mundo, dos nossos eus, da vida.” (p.11)
Com o objetivo de compreender o que possibilita o viver criativo, o autor dedicou grande parte de seus esforços na elaboração de uma teoria que fornecesse respostas aos questionamentos oriundos desta concepção. Tendo como pano de fundo a experiência analitica, como dito anteriormente, afirmou a importância do ambiente e da mãe no desenvolvimento de uma psique integrada e ativa na construção de uma vida criativa. Para o autor, nas últimas semanas de gestação e primeiras semanas de convivio entre mãe e filho, ocorre um estado psiquico específico que possibilita o desenvolvimento da identidade entre mãe e bebê. O bebê, ainda completamente dependente, potencializa a necessidade de cuidados e de dedicação por parte da mãe criando o que Winnicott chamou de “mãe suficientemente boa”, ou seja, aquela mãe capaz de responder às diversas demandas do bebê, permitindo que ele vá progressivamente atribuindo significado às suas vivências. Neste contexto, a partir da relação de identidade e confiança que se estabelece neste primeiro momento o bebê desenvolve a confiança que lhe permitirá estabelecer relações criativas com o ambiente em seu entorno, de modo progressivo até a vida em sociedade.
Partindo de sua experiência, ao analisar as primeiras relações que o bebê estabelece com a realidade, Winnicott nomeia um primeiro momento de “apercepção criativa” e um segundo momento de “percepção objetiva”. No primeiro, o bebê vivência o mundo de modo indiferenciado em relação a si; de modo que
“Enquanto o bebê está imerso na apercepção e ainda não se engajou na percepção tudo o que ele apercebe faz parte do eu, de forma que a apercepção consiste num olhar para si mesmo. A ela deve ser adicionada - e não contraposta – ao longo do desenvolvimento, a percepção, isto é, um olhar voltado para as coisas, para o não-eu, que se localiza externamente às bordas do eu. A criança, antes de descobrir o mundo, de percebê-lo objetivamente, o cria, o apercebe. (…) [Assim] A repetição da sequência apercepção criativa – percepção objetiva é o primeiro passo no sentido de um viver criativo, pois instaura a confiança no desejo como fonte de possibilidade.” (p.15-17)
Ao referir-se a força motriz que impulsiona o bebê à criar o mundo e deste modo relacionar-se com ele, citando Philips, BARBOSA, coloca duas raízes do instinto humano: uma agressiva que busca oposição e uma erótica que busca complementaridade. Para Winnicott, a agressividade3 manifesta primeiramente no exercício motor do bebê, depara-se com a realidade que a opõe e possibilita a percepção objetiva do que é externo, o não-eu, dos objetos; onde “O aspecto de realidade conferida a experiência criativa [empreendida pelo bebê] pela agressividade deriva do uso do aparelho motor (e sensório correspondente), por meio do qual o sujeito percebe objetivamente aquilo que criou.”(idem) Assim, através da ilusão/fantasia de onipotência, o bebê, sustentado pela “mãe suficientemente boa” através da repetição do ciclo apercepção criativa – percepção objetiva; cria um espaço de transição, que possibilita a vivência indiferenciada entre o eu e o não-eu, o objeto externo. Nas palavras da autora
“A experiência de ilusão, cuja reincidência deve ser garantida pela dedicação atenta da mãe, arquiteta uma área intermediária entre o eu e a realidade externa, onde se dá o exercício da criatividade. A área de ilusão – ou espaço transicional – é um espaço potencial de repouso e experimentação, em que o sujeito esta momentaneamente desobrigado de traçar uma linha delimitadora entre o dentro e o fora.
Este terceiro lugar, entre o interno e o externo, entre o eu e o não – eu, é o lugar em que experimentamos a vida, justamente por abrigar a criatividade. Os fenômenos que ai ocorrem – denotados transicionais – são infinitamente variáveis, em contraste com os fenômenos relativamente estereotipados do funcionamento corporal e da realidade ambiental.” (p. 20)
Ainda sobre a ilusão, Winnicott distingue dois tipos de fantasia: “(...) uma pessoal e organizada, relacionada com a história de de experiências físicas, excitações, prazeres e dores da infância; outra sinônimo de devaneio, que isola do contato consigo e com os outros, e custa a integração pessoal.” (Philipis, 1988, apud p. 22) Dai a importância de que este primeiro momento da existência ocorra de modo a possibilitar a capacidade de recriar4 estes espaços de transição ao longo da vida, tornando possível a elaboração de uma nova integridade do self caso esta seja cindida5.
Neste sentido, ao tratar das questões relativas à integração psiquica6 que possibilita o surgimento e a manutenção do eu, Winnicott compreende o desenvolvimento como o desenrolar de tendências herdadas cujo objetivo é a maturidade. Nas palavras de BARBOSA, “O desenvolvimento, em seu trajeto, vai compondo um repertório pessoal de capacidades, combinando-as de forma inclusiva. (…) constitui um espaço e um tempo abertos, um plano onde a existência nunca assume uma feição definitiva, mas se transfigura incessantemente, exibindo a fertilidade e a potencialidade criativas.” (p.27) Neste ponto, ressalta-se novamente o papel crucial desempenhando pela “mãe suficientemente boa” na elaboração e “oferecimento” de um ambiente “suficientemente bom”; que permita ao bebê a vivência da ilusão de onipotência atrelada a apercepção criativa e da agressividade que possibilitará a percepção objetiva da realidade de modo a permitir o surgimento do eu integrado, verdadeiro self. Assim, a ausência de tais condições, ao contrário, levará a organização de um falso self7, de modo que “A submissão ao meio – simetricamente oposta à relação criativa com o mundo externo – vem acompanhada de um sentimento de irrealidade e de inutilidade, que priva a vida de seu valor.”(p.40)
Neste sentido, a autora retoma o contexto histórico e cultural contemporâneo, utilizando como base para sua reflexão o conceito de biopoder proposto por Foucault e as especificidades da sociedade capitalista que está constantemente e cada vez mais interessada na venda de subjetividades. Estas, transformadas em mercadorias, tornam-se “modos de vida” expostos para “escolha” e compra de modo que “Estes ideais de eu, que circulam pelos interstícios do tecido social e atingem uma parcela significativa dos sujeitos, são manifestações do biopoder, de um poder sobre a vida, por meio do qual o capital tenta insistentemente capturá-la.” (p.41)
Em contraste a esta forma de conceber as coisas, Winnicott é partidário da proposta de Deleuze para quem a irredutibilidade da vida ao biopoder, baseia-se no que “(...) postulou sob a denominação de biopotência, isto é, o poder de invenção, a potência criadora da vida.” (idem). Entendendo a ética8 como uma forma de se relacionar consigo, é possível compreender a ideia de que o homem - assim como a ética – não está dado mas se constrói cotidianamente a partir das relações que vai estabelecendo com a realidade específica na qual esta inserido; sendo assim, o viver, um exercício de criatividade. De modo que “(...) temos ao nosso lado o ritmo da história que nos transforma em potências criadoras de novas relações consigo e com os outros, de novas maneiras de estar no mundo, de novas formas de ser como sujeitos.”(p.42)
Por fim, ressalta-se a oposição entre as ideias de submissão e criatividade, nas palavras de BARBOSA “A submissão caracteriza-se por uma complacência ao meio, uma aceitação das imposições sofridas, que enfraquece a vitalidade e esvazia o sentimento de continuidade da existência. (…) A criatividade, por sua vez, é o império do motor espontâneo da vida, da força agressiva que desbrava o mundo em busca do novo e conquista espaços cada vez maiores para o viver. Insere o sujeito numa abertura que o agraciam com o sentimento de ser, de existir de forma sempre revigorada, de estar em perpétua transfiguração. ” (p.42-43). Conclui retomando a ideia que atribui importância fundamental às teorias de Winnicott para a prática psicanalítica contemporânea; cujos objetivos sejam a superação da submissão dos sujeitos, de forma que lhes seja possível criarem e recriarem, atribuindo sentido cotidianamente às suas existências.
Notas
1Segundo Barbosa “(...) Winnicott nos abre uma via de compreensão dos sujeitos contemporâneos que frequentam os consultórios das cidades brasileiras. Muitos pacientes do século XXI apresentam em comum com os de Winnicott a ameaça constante de descontinuidade – de rompimento de suas existências – assim como uma espécie de atrofia de suas potencialidades criativas.” (p. 5)
2“[...] nossa teoria inclui a crença de que viver criativamente constitui um estado saudável, e de que a submissão é uma base doentia para a vida.” (Winnicott, 1971, p. 95 apud p. 7)
3“Não se trata, de forma alguma, de uma agressividade voltada contra alguém, que vise destruição. Esta sendo considerada aqui a fase preconcern, em que o bebê não tem dimensão dos efeitos de sua agressividade. Ao ser agressivo ele não está preocupado com as consequências de seus gestos; movimenta-se sem determinar uma direção ou uma intenção.” (p. 15)
4“Esta criação, segundo Costa (2004, p.117), significa a captação seletiva dos aspectos das coisas do mundo úteis para a ação; e ao agir no mundo, o sujeito confere significância ao desejo e a realidade do eu.” (p.24)
5“O brincar, que é uma primitiva prática da criatividade, uma forma primordial de habitar a área intermediária, não é prerrogativa infantil, mas deve ser fruida pelo sujeito em qualquer idade.” (idem)
6“A psique equivale à “elaboração imaginária dos elementos, sentimentos e funções somáticos, ou seja, da vitalidade física” (Winnicott, 1949, p. 333), dependendo, ´para isso, de um cérebro saudável.”(p.29)
7“Philips (1988, p.133-134) designa três funções do falso self: 1) atender as demandas da mãe, na medida do possível; 2) esconder e proteger o verdadeiro self, por meio da submissão ao meio; 3) ser uma ama-seca e cuidar do bebê.” (p.39)
8“Ética, para Foucault dos anos de 1980, é a relação consigo por meio de práticas. Esta concepção deriva de uma análise da Grécia pagã e dos primórdios do cristianismo, que proporciona como principal contribuição a sustentação da historicidade das práticas de si, da ética e da própria concepção de sujeito. O que está aí sublinhado é a potência de transformação de cada momento histórico, e a multiplicidade de formas de sujeito e de vida.” (p.41)
Bibliografia
In Monografia de conclusão de curso. Centro de Filosofia e Ciências Humanas – Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. 2004. Orientador: Maria Teresa da Silveira Pinheiro. Disponivel AQUI
Fonte de Imagens
Google Imagens





























Nenhum comentário:

Postar um comentário