Esperando contribuir (mesmo que minimamente) para a reflexão, pensando e desejando um novo estado de coisas, algo que gostaria de compartilhar:
“Infância e novidade
As palavras simples são as mais difíceis de escutar. Logo acreditamos que as entendemos e imediatamente, sem ouvi-las, as abandonamos e passamos para outra coisa. Hannah Arendt escreveu uma coisa tão simples que é difícil de ler (e não abandoná-la), como algo que todo mundo sabe. Hannah Arendt escreveu: “a educação tem a ver com o nascimento, com o fato de que constantemente nascem seres humanos no mundo”.
O nascimento de uma criança é um acontecimento que parece completamente trivial e despojado de qualquer mistério: algo habitual que se submete, sem qualquer dificuldade, à lógica daquilo que é normal, daquilo que pode ser previsto e antecipado. A extrema vulnerabilidade do recém-nascido torna absoluto o nosso poder, que nele não encontra nenhum obstáculo. Podemos, sem nenhuma resistência, projetar nele nossos desejos, nossos projetos, nossas expectativas, nossas dúvidas e nossos fantasmas. Inclusive, sua fragilidade e suas necessidades abrem-se com absoluta transparência àquilo que nós podemos lhe oferecer, à medida de nossa generosidade. Podemos vesti-lo com nossas cores, rodeá-lo com nossas palavras, levá-lo ao lugar que para ele fizemos em nossa casa e mostrar-lhe como algo totalmente próximo e familiar, como algo que nos pertence. A criança expõe-se completamente ao nosso olhar, se oferece absolutamente às nossas mãos e se submete sem resistência, para que a cubramos com nossas idéias, nossos sonhos e nossos delírios. Dir-ser-ia que o recém-nascido não é outra coisa senão aquilo que nós colocamos nele.
O nascimento não é senão o princípio de pum processo em que a criança, que começa a estar no mundo e que começa a ser um de nós, será introduzida no mundo e se converterá em um de nós. Esse processo é, sem dúvida, difícil e incerto. Mas, apesar desses resto irredutível de incerteza, o nascimento põe a criança em continuidade conosco e com nosso mundo. Desse ponto de vista, o nascimento situa-se numa dupla temporalidade: de um lado, o nascimento constitui o começo de uma cronologia que a criança terá de percorrer no caminho de seu desenvolvimento, de sua maturação e de sua progressiva individualização e socialização; por outro lado, o nascimento constitui um episódio na continuidade da história do mundo.
Mas, ao mesmo tempo, quando uma criança nasce, um outro aparece entre nós. E é um outro porque é sempre algo diferente da materialização de um projeto, da satisfação de uma necessidade, do cumprimento de um desejo, do complemento de uma carência ou do reaparecimento de uma perda. É um outro enquanto outro, não a partir daquilo que nós colocamos nela. É um outro porque sempre é outra coisa diferente do que podemos antecipar, porque sempre está além do que sabemos, ou do que queremos ou do que esperamos. Desse ponto de vista, uma criança é algo absolutamente novo que dissolve a solidez do nosso mundo e que suspende a certeza que nós temos de nós próprios. Não é o começo de um processo mais ou menos antecipável, mas uma origem absoluta, um verdadeiro início. Não é o momento em que colocamos a criança numa relação de continuidade conosco e com nosso mundo (para que se converta em um de nós e se introduza em nosso mundo), mas o instante da absoluta descontinuidade, da possibilidade enigmática de que algo que não sabemos e que não nos pertence inaugure um novo início. Por isso, o nascimento não é um momento que se possa situar numa cronologia, mas aquilo que interrompe toda cronologia. (…)
O nascimento é o aparecimento da novidade radical: o inesperado que interrompe toda expectativa: o acontecimento imprevisto que não pode ser tomado como a consequência de nenhuma causa e que não pode ser deduzido de nenhuma situação anterior; o que, longe de se inserir placidamente nos esquemas de percepção que funcionam no nosso mundo, coloca-os radicalmente em questão. Não é surpreendente, então, que Hannah Arendt tome como emblema do nascimento esse que teve lugar numa aldeia chamada Belém, há uns dois mil anos. O nascimento de Jesus representa, para ela, a expressão mais nítida e condensada das qualidades de todo nascimento: o milagre do aparecimento da novidade radical no mundo e a possibilidade sempre aberta da inauguração de um novo começo da história. O nascimento de Belém, como modelo de todo nascimento, é o acontecimento inesperado que interrompe a segurança do mundo e a continuidade da história. Por isso, para Hannah Arendt, a infância entendida como o que nasce é a salvaguarda da renovação do mundo e da descontinuidade do tempo.(…)
Pelo fato de que constamente nascem seres humanos no mundo, o tempo está sempre aberto a um novo começo: ao aparecimento de algo novo que o mundo deve ser capaz de receber, ainda que, para recebê-lo, tenha de ser capaz de se renovar; à vinda de algo novo ao qual tem que ser capaz de responder, ainda que, para responder, deva ser capaz de se colocar em questão.”
Texto de Jorge Larrosa, traduzido por Alfredo Veiga-Neto*.
Considerando a situação de abandono em que vivem as crianças nascidas e deixadas para morrer, hoje referindo-me a situação de seca e fome da Somália (onde estimativas dão conta de 300 mortes infantis por dia), o que o mundo tem feito com suas possibilidade de um novo começo? No que esta sociedade injusta, robótica e voraz do capital tem transformado as nossas possibilidades de um novo começo da história?
Parafraseando uma amiga: “Poder popular para o povo. Do jeito que está não tem mais condição!”
Abraços de coisas boas…
Lorena Oliveira
*In Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte; autêntica, 2003.
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