domingo, 7 de julho de 2013

[Resenha] Cap1. Fundamentos das oficinas de teatro. Roberto Rabêllo.


"Este mundo de merda está grávido de outro." Eduardo Galeano

Bons dias pessoas amigas! Quase um mês depois tem mais teatro por aqui. A resenha de hoje foi feita com base no primeiro capítulo da tese de doutorado que virou livro publicado pela Editora da Universidade Federal da Bahia, Teatro-Educação: uma experiência com jovens cegos; defendida por Roberto Sanches Rabêllo na Universidade de São Paulo em 2003. Neste primeiro capítulo, partindo da perspectiva que concebe o teatro como linguagem comunicativa que se elabora a partir de signos específicos e tendo como objetivo refletir sobre seu ensino, o autor pretende apresentar as opções teóricas e metodológicas que embasam o desenvolvimento de seu trabalho/pesquisa junto ao Instituto de Cegos da Bahia – ICB. Em um primeiro momento RABELLO busca retomar o percurso histórico do ensino de teatro no Brasil para em seguida apresentar as concepções de “jogos teatrais”, conforme elaborados pela professora/pesquisadora norte-americana Viola Spolin, e das “peças didáticas” constituídas pelo dramaturgo e pensador alemão Bertold Brecht.

Em tempos de agitação  política, muitas são as questões que ganham destaque (ou pelo menos deveriam ganhar...), mais do que isso, muitas são as questões que são estranhadas/desnaturalizadas... mostrando a potencialidade humana de refletir e criar novas possibilidades de resposta para seus problemas, de olhar de diferentes perspectivas a realidade no qual está inserido...  Assim, fica aqui registrado todo meu apoio e respeito aos movimentos populares, meu empenho em continuar trabalhando com a ideia de que podemos construir um mundo mais justo e infinitas vezes mais humano. Com especial carinho, todo apoio e respeito ao Movimento Mães de Maio que continua na luta, sempre! 

As imagens são do livro Retratos de Crianças do Êxodo do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, publicado em 2000.


  
  
  
  









Abraços,

Lorena Oliveira

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RABELLO, Roberto Sanches. Cap1. Fundamentos das oficinas de teatro

Brasil

No início do século XX, ainda em um contexto de ensino dito tradicionalista, quando a montagem de textos dramáticos era realizada nas escolas, elas tinham como objetivo principal a construção de espetáculos, onde o professor desempenhava o papel de diretor, criando marcas e exigindo a “decoreba” dos textos, enquanto os alunos a eles se submetiam incorporando costumes (modelos sociais) propostos pela literatura do período. Dito de outro modo “A perspectiva era de realização de espetáculos acabados, sem que os aspectos educativos, psicológicos e contextuais fossem levados em consideração”1, destacando-se seu caráter de ensino autoritário e utilitarista.
Ao final da década de 1920 a abordagem pedagógica escolanovista passa a influenciar o ensino de teatro. Considerando as premissas do movimento estético expressionista, traz para o centro de interesse e discussão os processos, a criatividade, a liberdade de expressão e a espontaneidade, com destaque para os aspectos psicológicos dos alunos. Tratava-se de “aprender fazendo” a partir das experiências proporcionadas pelo desempenho de papéis. “O teatro, portanto, era entendido como veículo de expressão espontânea de sentimento, forma de liberação emocional sem a intencionalidade da comunicação.”2; o que, segundo o autor, resultou em um espontaneísmo que acabou por contribuir para a desvalorização dos aspectos específicos do teatro, como o texto e o espetáculo.3
É a partir das pesquisas realizadas na década de 1980 e das experiências com os chamados jogos teatrais, que o ensino de teatro passa a se concentrar nas diversas possibilidades de apropriação dos textos dramáticos, no contexto cultural, no desenvolvimento da crítica, na ampliação da percepção estética e mesmo da apreensão das especificidades do teatro enquanto linguagem comunicativa, por parte dos alunos. Para RABELLO

Esses estudos apresentam procedimentos empregados com sucesso, em turmas de crianças, adolescentes ou adultos, cuja apropriação do texto literário e/ou do texto dramático acontece de maneira satisfatória – sem reduzir a literatura ou o teatro a um mero recurso didático. Ou seja, garantindo a especificidade de um e de outro, enquanto literatura e enquanto teatro (ambos vistos como material elucidativo da realidade social).”4

O sistema de jogos teatrais de Viola Spolin

Parte da ideia fundamental de que qualquer pessoa pode“jogar teatro”, uma vez que “(...) todas as pessoas são capazes de atuar no palco, de jogar, de improvisar e de aprender por meio da experiência.”5; em um processo que visa, entre outras coisas, a emergência da personalidade do indivíduo crítico através da ampliação de sua capacidade individual de experienciar um envolvimento orgânico/espontâneo com a realidade, em seus aspectos intelectuais, físicos e intuitivos. Neste sentido, de acordo com SPOLIN, o jogo teatral permite a criação de formas simbólicas que introduzem os “jogadores” nas especifidades da linguagem teatral sem a necessidade de uma extensa exposição teórica. Para a autora, em um contexto de liberdade proporcionado pelo ato espontâneo, no momento mesmo em que o indivíduo direciona energia para a resolução da problemática proposta pelo jogo, ele apreende, reflete e aprende de forma orgânica sobre a diversidade de aspectos que compõem as relações sociais6 e a realidade. Nas palavras de RABELLO

O jogador, ao preparar seu equipamento sensorial e ao estabelecer contato direto com o ambiente criado termina por apreender não apenas o mundo do teatro, mas o reconhecimento do próprio mundo exterior. A experiência amplia a sua habilidade para envolver-se com seu próprio mundo fenomenal, o que por sua vez, amplia sua experiência como ator. Nas palavras da autora: O mundo fornece o material para o teatro, e o crescimento artístico desenvolve-se par e passo com o nosso reconhecimento e percepção do mundo e de nós mesmos dentro dele. (SPOLIN, 1979, p. 13)”7

Seu processo de trabalho se assenta nas noções “(...) de fisicalização, ou seja, a apresentação do material em nível físico e não verbal.8 De instrução, realizada pelo professor no momento em que a cena está sendo apresentada, de solução de problema cênico pelas equipes de trabalho e por fim, a de avaliação coletiva do problema de atuação.”9; sendo ordenado nos seguintes momentos:

  • jogos tradicionais e de orientação: são aqueles que buscam potencializar a abertura para o espontâneo, a integração do grupo, a ampliação da percepção espacial e a canalização de energia para a resolução de uma problemática a partir do estabelecimento de um foco;
  • Jogos acrescidos de estrutura dramática: O quê (ação/atividade); Onde (ambiente/espaço) e Quem (personagem);
  • Envolvimento com o problema de atuação: busca a resolução da problemática do jogo através da criação de cenas em grupos;
  • Comunicação orgânica público-platéia: busca o compartilhamento das cenas elaboradas e a ampliação do vocabulário cênico tanto de atores quanto do público constituído pelos colegas;
  • Avaliação coletiva: busca refletir em que medida o problema cênico foi solucionado contribuindo para a materialização da unidade público-platéia. Nas palavras do autor “A atuação passa a ser compreendida como ato de comunicação, e a platéia entendida como elemento orgânico da experiência teatral, fazendo parte do acordo de grupo.”10

Implicações educacionais do teatro de Brecht: a teoria da peça didática

Para pensar a teoria da peça didática, RABELLO parte das considerações de BENJAMIN sobre o teatro épico, em seu caráter de experiência, conforme elaborado por Bertold Brecht em meio ao clima de revolução e de renovação das ideias, que marcou o início do século XX. Assim, segundo o autor, para que seja possível compreender esta estética é fundamental que se tenha em mente o contexto no qual ela foi concebida; particularmente no que se refere ao fato de que

(...) o teatro épico surge para dar conta de uma situação insustentável: a perda da função do abismo que separa a cena no palco e o público.11 O público, diz ele, não significa mais uma massa de pessoas hipnotizadas, embriagadas, “cobaias humanas”, mas uma reunião de pessoas interessadas nas questões históricas emergentes, cujas exigências devem-se satisfazer. Trata-se de um leitor mais crítico e responsável, que não se envolve com a sorte comovedora do herói.
O teatro épico toma como ponto de partida, a alteração de um contexto funcional que, por sua vez, exige mudanças no fenômeno teatral. Na busca da quebra do ilusionismo, não só a relação com o espectador é questionada, como também a dramaturgia, a poética do espetáculo, o trabalho do ator e de todos os elementos que compõe a realidade cênica.”12

Para BRECHT, era preciso construir um teatro condizente com o período moderno científico, um teatro que tivesse uma orientação dramática sociológica e não mais psicológica. Neste contexto, na formulação de um espetáculo o foco central de atores, dramaturgos e encenadores, não deveria ser a busca do fenômeno catártico aristotélico mas sim o favorecimento do que o autor chamou de efeito de distanciamento/estranhamento, na platéia. Em suas palavras “O que é distanciamento? Distanciar um fato ou caráter, é, antes de tudo, simplesmente tirar desse fato ou desse caráter tudo o que ele tem de natural, conhecido, evidente, e fazer nascer em seu lugar espanto e curiosidade […] Distanciar é historicizar os fatos e personagens.”13. É buscar e permitir a reflexão que leva a desnaturalização, particularmente, das condições socioeconômicas de um grupo.
Para tanto, sugere que se faça uma desconstrução da ideia de espetáculo tradicional de modo que não seja permitida ao espectador uma identificação emotiva. Através do encadeamento descontinuo de cenas, por exemplo14,

Cada cena possui uma significação em si, revela algo diferente – o que BRECHT chama de gestus15. O sentido global é deduzido pelo espectador que, dessa maneira, constrói um posicionamento crítico, desenvolvendo o conhecimento. (…) O teatro, portanto, é posto a serviço de uma pedagogia social na medida em que o espectador se prepara para melhor dominar a realidade e agir sobre ela.”16

Neste contexto, embora haja divergências entre os estudiosos do tema, as peças didáticas, enquanto proposta de prática17 pedagógica política-estética, são elaboradas por Brecht em um momento em que ele

(...) está menos interessado em obrigar o aluno a aceitar suas teses, do que em provocar-lhe a inteligência, habituá-lo a se colocar em posição crítica ante as situações cuja problemática é desvendada – atitude que espera seja, por parte do aluno, uma aquisição que se prolongue para a vida toda. [Rompendo de forma radical a relação de oposição palco-platéia] (…) A peça didática ensina quando nela se atua e não através da recepção estética passiva.”18

Partindo de modelos de ação (textos) e de alguns princípios fundamentais, o aluno/atuante é convidado a uma experiência consciente que pretende o estranhamento do familiar e a crítica social através da incorporação da vida cotidiana em seu contexto de aprendizagem. Similares a proposta dos jogos teatrais de SPOLIN, são princípios fundamentais da proposta brechtiniana a consideração – exploração dos aspectos a) lúdicos e sensório – corporais; b) a ênfase no cotidiano dos jogadores; c) o exame de atitudes contraditórias tendo em vista o modelo de ação (texto) proposto; d) a experimentação e a reconstrução do texto; e) a avaliação coletiva; f) o relacionamento entre atores e espectadores através da não formalização da platéia; g) o estranhamento.
Dito isto, RABÊLLO pontua a importância de que se faça uma revisão crítica desta proposta, tendo em vista sua particularidade histórica; mas também ressalta seu caráter atual, dada a especificidade de seus objetivos, quais sejam o desenvolvimento crítico, a reflexão e a aprendizagem, marcadamente dos aspectos sociais de uma comunidade, visando sua transformação/reconfiguração; e ainda a vigência do modelo econômico capitalista que em sua desigualdade aumenta a distância que afasta grande parte das populações do contato frequente com a linguagem artística do teatro.

Por fim, o autor retoma o que foi dito, salientando que sua opção pelas propostas metodológicas dos jogos teatrais elaborados pela professora norte-americana Viola Spolin; e da peça didática do dramaturgo alemão Bertold Brecht; se da no encontro com o trabalho/processo enquanto educador na linguagem artística do teatro, desenvolvido com um grupo de jovens do Instituto de Cegos da Bahia – ICB, tanto no que se refere a seu aspecto de ensino/aprendizagem das especificidades desta linguagem quanto de suas próprias reflexões e aprendizagens quanto ao específico em conduzir o desenvolvimento de experiências de aprendizagem que consideram o teatro em seus aspecto comunicativo e em seu aspecto de teatro crítico e potencializador de vivências conscientes e transformadoras, para jovens com deficiência visual.

Notas

1p.20.
2Idem.
3Nas palavras de KOUDELA (1984) “A oposição ao teatro é sempre fundamentada nos aspectos formais que o espetáculo impõe a atuação e que são exteriores à criança. O aluno que simplesmente decora um texto clássico e o espetáculo que se preocupa apenas com a produção não reflete valores educacionais, se o sujeito da representação não foi mobilizado para uma ação espontanea. Mas a visão puramente espontaneista também corre o risco de reduzir a proposta de educação artística a objetivos meramente psicológicos, o que afasta a possibilidade de entender a arte como forma de conhecimento.” (p.25)
4p.22.
5p.23.
6“O teatro improvisacional requer um relacionamento de grupo muito intenso, pois é a a partir do acordo e da atuação em grupo que emerge o material para as cenas e peças. (SPOLIN, 1979, p. 9) Além do mais, na experiência criativa por intermédio do teatro, a participação nas atividades desenvolvidas e a segurança proporcionada pelo grupo permitem ao aluno se integrar, se descobrir como elemento criativo e aceitar as similaridades e diferenças.” (p.26)
7p.26
8“Como afirma SPOLIN (1979, p.14) “[...] nossa primeira preocupação é encorajar a liberdade de expressão física, porque o relacionamento físico e sensorial com a forma de arte abre as portas para o insight.”
9p.24
10p.25
11“O próprio nível em que se estabelece a comunicação com o público já vinha mudando na Europa dos anos vinte. No expressionismo, estilo que começou a se desentranhar afrontando a hegemonia do naturalismo – o personagem indivíduo cede lugar ao personagem tipo – não existe a idealização de personagens paradigmaticos do teatro clássico . Sempre concentrado na formação da personalidade, o diálogo destitui a subjetividade e tende a transformar o discurso do ator numa forma de comentário: “não é propriamente entre si que os atores mantinham o diálogo, e sim, ao que parece, com o público.”(BORNHEIM, 1992, p.27)
12p.27
13Apud p.29. (BRECHT, 1967, p.137-138)
14“Inúmeros procedimentos são utilizados para efetuar o estranhamento em relação à realidade encenada nos diversos níveis da representação teatral, entre outros: a parábola, a evidenciação cênica do gestus, a inserção de relato comentando a cena, a intervenção de um coro, o contato direto com o público, a mudança de cenário às vistas do público, as projeções, as songs.” p.31
15Nas palavras de BRECHT “Chamamos a esfera do gesto à esfera a que pertencem atitudes que as personagens assumem em relação umas às outras. A posição do corpo, a entonação e a expressão fisionomica são determinadas por um “gesto” social; as personagens injuriam-se mutuamente, cumprimentam-se, esclarecem- se etc.” (1964, p.199 apud p.30)
16p.30-31
17“BRECHT utiliza modelos de ação (textos). A improvisação é introduzida a partir do texto e deve ser bem pensada.” (KOUDELA, 1991, p.31 apud p. 37)

18p.34 (KOUDELA, 1996, p. 13)   

Referências

RABELLO, Roberto Sanches. Teatro-educação: uma experiência com jovens cegos. Salvador: EDUFBA, 2011.
Google Imagens.

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