terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

[Resenha] Retórica de Infância. BECCHI, Egle.

 

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Uma boa noite aos que por aqui estiverem. Hoje trago a resenha do artigo a Retórica de Infância de Egle Becchi. Originalmente publicado na Rivista aut aut, Milano em 1982 foi traduzido por Ana Gomes. De leitura difícil, foram-me necessárias algumas semanas para que eu pudesse por um (provisório) ponto final nesta resenha. Tratando de questões referentes a elaboração, ao longo da história, de metáforas constituitivas das diferentes ideias de infância; a autora discute sua condição de in-fans (aquele que não pode falar) com o objetivo de valorizar a criança dando-lhe palavra e o respeito que é devido aquele que também sabe falar de si através de uma infinidade de linguagens.

O artigo está disponível para consulta na internet mas sendo um documento em PDF não consegui colocar o link aqui. Deixo, desta vez, um pedido aqueles que o tempo e a vontade permitirem, para que me ajudem aqui (dada a dificuldade que encontrei na leitura deste texto) comentando a coerência e a coesão do texto.

Abraços de coisas boas,

Lorena Oliveira

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Tradução de Ana Gomes

Resenha

Tal história está até hoje incompleta, porque a infância, seja como for, é o termo fraco de de um conjunto social baseado no adulto e intencionado a conhecer o mundo pueril somente para se utilizar melhor dele e no fim das contas, até hoje, com paciência, espera por aqueles momentos em que as contingências sociais, coragens e rupturas teóricas ou esperanças de renovamento global recoloquem em questão o seu significado, imaginando provisoriamente novas metáforas e tentando incursões em discursos diferentes e menos retóricos.” (p.75)

A autora inicia sua reflexão referindo-se a infância como um conceito/ período/ elaboração que existe para e a partir de um “outro”. Diz-se “outro” por ser a infância concebida sob o ponto de vista daqueles que já não são pequenos e pequenas. Frequentemente, o discurso e a prática voltados as crianças constroem-se com base em uma série de ciências.

“Falar de infância significa, hoje como antes, usar vocábulos e conceitos extraídos de um variado dicionário biológico, botânico, zoológico, espacial, material e fazer investigações sobre a infância significa, salvo raras exceções, tratar das circunstâncias nas quais sua vida se desenvolve, não da sua existência em si mesma.” (p. 63)

E ainda que “Sistema ou romance, ela é enredada nas malhas de uma palavra que não pronuncia por imaturidade de conhecimentos e de expressão, e por invalidez social, mas sobretudo porque, por definição, enquanto in-fans1, ela não sabe falar.” (p.64) Becchi entende ser um grande esforço, tanto retórico quanto epistemológico, a concepção de uma infância que não mais se constrói unicamente a partir da palavra mas que também se entrega a “(...) imagens, gestos, vivências, projetos passionais.” (p.64)

Refletindo sobre sua condição de vocábulo que frequentemente se desdobra em figuras de linguagem como a metonímia2 e o litote3, a autora entende a infância como “instância” sobre a qual recaem, em sua grande maioria, ideias de desvalorização e falta; enquanto que a metáfora4 de infância, como figura de estilo, pode levar a superação daquelas, entendendo-a, no âmbito do conhecimento, como um instrumento que pode permitir “(...) ao cientista a obtenção de resultados experimentais graças aos quais (…), ele poderá abandonar a analogia como o construtor desmonta os andaimes, depois de ter terminado a construção do prédio.” (PERELMAN Apud BECCHI, p.65)

“A metáfora teria então um valor provisório e deveria preparar um conhecimento mais pertinente e mais completo (…) No caso da infância, esta propedêutica parece porém lenta e difícil de se consumar (…) A qualidade metonímica e litótica deste vocábulo induz, com efeito, a vestimentos e revestimentos metafóricos muito variados e resistentes, fruto em todos os casos de seleções culturais diferentes em função da época e do lugar. Nesta fenomenologia por vezes se repetem metáforas antigas, outras vezes se inventam novas; e em alguns casos se reativam aquelas entorpecidas.” (p.66)

Com o objetivo de melhor elucidar o surgimento e o desdobramento de tais construções ao longo do tempo, em uma breve digressão histórica a autora nos fala sobre a França do século XVII5 , considerada a especificidade das pequenas escolas de Port-Royal6, onde

“(...) a prática formativa segue (e confirma) uma teoria respeitosa de toda a história do indivíduo pequeno e grande, masculino e feminino, nobre e popular, a verifica e a enriquece, vendo na infância o lugar do mal e do pecado, mas também do possível e da redenção na graça e, por isto, ocasião eleita do compromisso religioso e social do adulto, que na redenção do fraco e na guerra contra as forças do mal pratica sua fé. Nas páginas dos mestres de Port-Royal, a infância ocupa, portanto, um lugar de relevância, e alcança um significado até então nunca experimentado.” (p.67)

(…) ao lado destas metáforas clássicas e geométrico-militares referidas em tempos recentes, que dão ensejo a obra pedagógica porque representam o pupilo como uma realidade dinâmica e em desenvolvimento, existem outras de não menor relevância, de diferente origem cultural, ligadas a ideia do não-adulto como um doente, por curar, e portanto como alguém para ser reeducado e não para ser formado ex novo.” (p.69)

(…) Contudo, neste pari, a infância parece que se perde mais do que no revestimento das outras metáforas. Se as imagens vegetais ou zoomorfas continham a esperança de um crescimento, nesta outra há somente a esperança de uma conversão – ou de uma cura incerta, fruto do acaso e de uma fé não garantida – mais do que de uma ação ou de um empenho. (idem)

Embasadas nas metáforas descritas, as práticas pedagógicas e discursos sobre a infância foram construídos com o objetivo de garantir o adulto bom e educado do futuro. As crianças, vistas como seres incompletos e doentes, passíveis e necessitados de transformação; estiveram renegadas ao silêncio. Sem a voz infantil, práticas e discursos,acabaram por ser voltados apenas a formar o educador e as metodologias e técnicas necessárias a cura e a transformação das crianças em adultos bons e educados. De modo que “(...) os artifícios retóricos de Port-Royal nos fazem refletir sobre a dificuldade de um acesso não só poético ao mundo infantil, sobre os riscos e impedimentos de um itinerário da palavra na realidade infantil.”(p.74)

Dando continuidade a reflexão, sua próxima discussão realiza-se em torno da desconstrução das metáforas de infância realizadas a partir de O Emílio de Rousseau.

“Emílio é delineado como uma criança possível, que tem todas as ocasiões, positivas e negativas, para ser educado segundo a natureza, seguindo as linhas de uma história variada, por itinerários de romance onde o conto é livre de metáfora e a infância da qual não faz memória autobiográfica, parece se emancipar do domínio retórico, retornando em si e por si, resgatada da alienação da palavra outra.

O projeto sócio-educativo de Rousseau se inicia dando ao enfant uma colocação no mundo: 'a humanidade tem seu lugar na ordem das coisas; a infância tem seu lugar na ordem da vida humana'. É preciso considerar o homem no homem e a infância no enfant, 'é a natureza [mesma que] quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens […]. A infância possui modos de ver, de pensar, de sentir que lhe são próprios', e tal princípio culmina com o velho dito 'respeitar a infância' porque como cada momento da natureza 'cada idade, cada estágio da vida possui uma perfeição peculiar, aquela maturidade específica que lhe é própria'. Trata-se porém de um princípio novo, difícil de introduzir na prática uma vez que 'nós não sabemos nos colocar no lugar das crianças, não entramos nas ideias delas, mas atribuímos a elas as nossas ideias (...)” ( Rousseau apud Becchi, p. 76)

Embora, de um determinado ponto de vista, suas propostas tenham ficado restritas a teoria7, a Rousseau se deve o mérito de ter construído um projeto pedagógico-social que preconizava a criança como ser que deve ser respeitado, sendo completo e competente em sua especificidade. Dissolvendo a metonímia litótica de infância como aquele que não é capaz de falar o autor afirma que “(...) a criança é um ser que sabe falar e que é dotado de uma sua língua, (…) com inflexões, sonora, inteligível (...)” (p.78)

Para concluir a reflexão histórica Becchi cita as

“(...) experiências educativas libertárias que deram o ritmo a dois séculos de iniciativas de formação em nome da infância, e nas psicologias que (de Claparéde a Wallon, a Piaget), em nome de uma observação direta da criança, foram propostas como inovações a nível dos procedimentos e também das definições teóricas.” (p. 79)

Com especial enfoque na psicologia genética de Jean Piaget, a autora considera que os avanços propiciados por uma releitura e pela realização dos ideais preconizados por Rousseau em O Emílio, de valoração da criança e sua linguagem; acabam por recair na metonímia litótica de infância. Tendo em vista a profusão de termos oriundos das ciências físicas8 e biológicas9, e o fato de ao longo do tempo terem sido diminuídos os estudos cuja centralidade tenha sido a investigação a cerca da linguagem e da comunicação infantil de si; entende-se que a criança volta a ser apenas um observatório destinado a comprovação ou negação das hipóteses construídas por esta ciência. Como afirma ao dizer que

“Antes de mais nada, a consideração da linguagem infantil varia radicalmente, uma vez que partindo de um estudo intensivo nos primeiros textos, ela perde progressivamente a importância na análise da realidade infantil, até ser desvalorizada nos textos mais maduros, como via de acesso à mente da criança, e não mais observada. Portanto, logo se representa o enfant, também nos textos piagetianos, como o não-falante sobre o qual se faz discurso, (…) ele é reenviado à infância e a primeira e fundamental captura retórica, a metonímia com valores de litotes, se reconstrói, tornando possível pela enésima vez na história da criança, outras e múltiplas operações de invalidação.” (p.80)

Dito isto, Becchi propõe duas reflexões: uma oriunda do conhecimento ofertado pela leitura de seu artigo que nos diz que é somente a partir de uma investigação que leve em conta o contexto de surgimento das metáforas que constituem o ideário de infância, que suas ambiguidades poderão ser desfeitas, desmontando-se o conceito cristalizado de uma infância que acontece apenas na fala do adulto; e uma outra sobre a necessidade de darmos voz à infância para que ela nos conte mais sobre si e suas vivências, afirmando a criança, ser falante, aberto e capaz de dizer de si, como interlocutora de um diálogo.

'(…) dar palavra à infância, isto é, de abordá-la para além das figuras retóricas, com intenção de falar dela consentindo a resposta, permitindo uma comunicação não só no verbo, mas também no gesto e no signo, no movimento e no caminho, no silêncio e no sintoma, e dando espaço e direito a tais linguagens. “ (p.83)

Concluindo que

“Para tanto é necessário abandonar uma técnica da palavra aculturante na qual se enreda a infância, e passar ao exercício de um ouvido refinado, numa perspectiva de mutua construção - adultos e não-adultos – de competências expressivas e comunicativas onde o registro não seja o da vigilância e o da captura, mas o da recíproca distribuição e da troca, do reconhecimento das mensagens e indícios expressivos em códigos muito variados, da legitimação dos sons e das pausas porque dotados de qualidade informativa“ ( idem)

In Revista Perspectiva. Florianópolis, UFSC/ CED, NUP, n°22. p.63 – 95.

Notas

1“(...) em boa parte das línguas neolatinas e também em inglês (…) de fato, infante deriva de in-fari (= que não pode falar) onde uma parte (a incompetência linguística) designa o todo.” (p;64)

2Chama-se metonímia ou transnominação uma figura de linguagem que consiste no emprego de um termo por outro, dada a relação de semelhança ou a possibilidade de associação entre eles.

3Segundo o Dicionário Aurélio a Litotes é o “modo de afirmação por meio da negação do contrário.”

4“(...) a metáfora é também um instrumento que faz avançar o conhecimento; (… ) ela é afirmada em maneira mais explícita e mais pormenorizada numa perspectiva diferente, que não considera a metáfora exclusiva à argumentação, mas como interna ao discurso científico mesmo, que possui êxitos empíricos e que produz conhecimento e observação.” (p.72)

“Como afirma também Humberto Eco, significa atribuir-lhe um valor não só de substituição, mas um valor aditivo: 'a metáfora não é delito, mas sim instrumento de conhecimento, clareza e enigma'. “(p.73)

5“(...) época na qual a infância começa a adquirir um estatuto próprio, lutando contra os resíduos de uma cultura que por longo tempo continuou a nega-la (...)” (p.67)

6Lancelot, L' education des princes de Conti, cit in Carré, p.68

7O Emílio foi escrito com base em uma criança imaginada. O objetivo de Rousseau ao escreve-lo foi elaborar uma espécie de guia voltado a educação da criança. “O auspício é então que outros, bem mais sábios do que os contemporâneos, leiam fielmente a natureza, para descrever aquele retrato atendível da infância que é o fundamento de todas as construções sociais: 'gostaria que um homem criterioso nos desse um tratado sobre a arte de observar as crianças.' E enquanto espera essa observação sistemática, Rousseau olha para Emilio como um modelo realmente teórico de infância(...)” (p.77)

8“(...) campo, descentrar, conservação, constância, energia invariante, isomorfismo, mecanismo, operação (…)” (p.80)

9“(...) acomodação, ajustamento, adaptação, assimilação, equilibrio (...)” (p.81)

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Fonte de Imagens: Google Imagens

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